7.8.07

Khorvaire Map



Enfim, o tão prometido mapa de Khorvaire (cliquem na imagem para vê-la maior). Recomendo a todos imprimir.

Visita a Galifar VII

Mapa de Khorvaire


Thronehold, 25 Zarantyr de 892 A.R.

Porfiei quase dois meses, mas, finalmente, consegui. Viera à capital unicamente para conhecer este homem e não queria retirar-me sem o ouvir. Parece-me, no seu gênero, um dos três ou quatro seres humanos vivos que vale a pena escutar. Chegar até ele custou-me quase cinco mil peças de ouro – entre presentes aos comissários dos altos escalões da Aurum, gorjetas aos soldados de elite, donativos à Casa Sivis – mas não me queixo.

A princípio, disseram que o Rei estava atuando em uma árdua e secreta campanha, de maneira que não podia receber ninguém, salvo os seus íntimos. Em caráter excepcionalíssimo, ser-me-ia consentida uma entrevista supervisionada na sala de visitantes do Palácio.

Chegando lá, me surpreendi ao notar que meus encantamentos cuidadosamente preparados desconjuntaram-se instantaneamente assim que pisei no território; paralelamente, serviçais fortemente armados requisitaram, de forma um tanto indelicada, a custódia momentânea de todas as jóias e demais objetos que portava. Em seguida, ao cruzar o átrio, divisei uma figura que aparentava ser o monarca, porém encolhida e apagada ante o esplendor do recinto, a enorme mesa de darkwood que separava nossos corpos e os colossos trajados de reluzente metal que faziam sua escolta.

Conversamos amenidades por breve tempo, e, entre um copo de vinho e outro, tomei coragem e indaguei se eu poderia ter a honra de interagir com o Verdadeiro Rei. Ele ficou em silêncio um tempo considerável, e afirmou não entender minha formulação. Então, eu disse que não precisava de expedientes mágicos para deduzir o que se passava, e que minha contribuição poderia socorrer a sua difícil Jyhad contra os outsiders. Após outro longo silêncio, consentira em ver-me, finalmente.

À noite, as últimas dificuldades foram vencidas e foi-me confiada a verdadeira localização do soberano, numa aldeia vizinha, uma antiga villa de senhores, com o habitual peristilo de colunas brancas à entrada, para a qual parti no dia seguinte.

Porfiei quase dois meses, mas, enfim, consegui. Viera à capital unicamente para conhecer este homem e não queria retirar-me sem o ouvir. É um dos quatro ou cinco seres humanos vivos que vale a pena escutar.

Fui recebido pela própria rainha, uma mulher gorda que me olhou como as enfermeiras olham um novo doente. Encontrei Jarot Galifar numa pequena varanda, sentado diante de uma mesa coberta de enormes folhas com desenhos e diagramas. Para minha surpresa, meus encantamentos permaneceram ativos. Um erro primordial; proteção afetada e ostensiva para o simulacro, e o verdadeiro padecendo de total desamparo.

A propósito, em que pesem as épicas lendas que rondam sua figura, ele produziu-me a impressão de um condenado a quem se permitiu gozar em paz as últimas horas de vida. A cara parecia feita de queijo velho e seco. Entre os lábios quebradiços, a caveira mostrava, já, a fila sinistra dos dentes. Dois olhos turvos e inquisitivos de ave solitária ocultavam-se atrás das pálpebras sanguinolentas. As mãos brincavam com uma pena ornamentada: via-se que tinham sido grandes e fortes, mãos de guerreiro, mas perderam o viço. Nunca mais poderei esquecer as suas orelhas de caqui chupado, estendidas para fora como para recolher os últimos sons do mundo, antes do silêncio imenso. Fiz reverência e me sentei na outra extremidade da mesa, mantendo uma distância que nos dividiria durante toda a entrevista.

Os primeiros minutos do colóquio foram bastante penosos.

Jarot explicava que fazia parte do sistema de segurança despachar sósias seus para diversas localidades - inclusive a capital-, a fim de despistar e ocultar de seus numerosos inimigos os atuais andamentos da Campanha, e que isso obviamente não funcionaria com um homem do meu engenho. Mas fazia isso com um ar distraído, como se estivesse a cumprir um dever que não o interessava. Eu, diante daquela figura sorumbática, não tinha coragem para formular as perguntas que preparara. Murmurei, ao acaso, algumas palavras lisonjeiras sobre a grande obra por ele realizada em Khorvaire. Aquela cara encanecida encheu-se, então, de rugas espectrais que pretendiam ser um sorriso sarcástico.

- Mas, se tudo estava feito – exclamou, com uma galhardia inesperada e quase cruel -, tudo estava feito antes de chegarmos! Os estrangeiros e os imbecis supõem que se criou aqui alguma coisa de novo. Erro de burgueses cegos!

Nada mais fiz do que reinventar e contextualizar regras e institutos do passado! As rotas comerciais, os convênios estabelecidos com as Dragonmarked Houses, o assistencialismo aos paupérrimos e inválidos, a estabilidade e solidez financeira, a “relativa autonomia” dos Cantões, enfim, todas as benfeitorias atribuídas à minha administração foram extraídas de Gosh, Mal’Ganis, Debrandt, Reverie, os clássicos. Acontece que estas idéias, quando surgiram, estavam além de suas épocas, em contextos e ambientes inadequados para a sua aplicação, e eu nada mais fiz do que sintetizá-las, aproveitando o momento propício.

- Toda a criação é síntese, o que não acaba por tirar o mérito do criador.

Suas feições suavizaram levemente. - A vantagem de dialogar com homens de sua cepa é que nos entendemos.

Fiz uma de minhas perguntas:

- E os camponeses?

- Odeio os camponeses – respondeu, com um gesto de asco -, representam tudo o que eu detesto: o passado, a fé, a tacanhez, a mania religiosa, o trabalho manual. Tolero-os e acaricio-os, mas odeio-os. Quisera vê-los desaparecer, todos, até o último. Para mim, um soldado vale cem mil camponeses.

- Sábio é aquele que, para garantir a paz, se prepara para a guerra.

Ele sorriu, verdadeiramente, desta vez. Consegui, com minha postura cínica, obter a confiança que faltava para ele se expandir e exprimir mais informações.

- Os humanóides, senhor Lock, são selvagens espantosos que precisam ser dominados por um selvagem sem escrúpulos como eu. O resto é conversa fiada, literatura, filosofia e música para tolos. E como os selvagens são semelhantes aos criminosos, o primeiro ideal de todo o governo deveria ser que a nação se assemelhe o mais possível de um estabelecimento penal. A masmorra é a última palavra da sabedoria política. Bem pensado, a vida do penitenciário é a que mais se adapta ao padrão dos seres comuns. Não sendo livres, estão, em última análise, isentos dos perigos e dos incômodos da responsabilidade e acham-se em condições de não poderem praticar o mal. Logo que um homem entra na prisão, deve, por força, levar uma vida de inocente. Além disso, não tem pensamentos nem preocupações, pois há quem pense e mande por ele: trabalha com o corpo, mas seu espírito descansa. E sabe que todos os dias poderá comer e dormir, e tudo isto sem as preocupações que incumbem ao homem livre para procurar o pão de todas as semanas e o leite de todas as noites. O meu sonho é transformar Khorvaire em um imenso estabelecimento penal, e não suponha que o digo por egoísmo, pois, com tal sistema, os mais escravos e sacrificados seriam os chefes e os que os secundam!

Fingi que desconhecia o assunto e formulei outra das minhas perguntas:
- Ao que me parece, o Reinado tem instituições e cartas de direitos sólidas, não sendo nem um pouco similar a um cárcere. Explique-me como vem implementando esta doutrina.

- No passado, ela já foi aplicada através da força, da coerção e do controle ostensivo; houve até mesmo quem tivesse tentado a Prisão com correntes e barras de ferro! Entretanto, descobriu-se através da tentativa e erro que esses métodos são falhos, por não conseguir domar as Vontades por muito tempo. Desde então, o grande projeto tem sido administrar um sistema mais estável e duradouro, e para isso é necessário escamotear o Aparato, conquistando a confiança não só dos humanos, mas de todas as raças humanóides, algumas com expectativa de vida muito maiores do que as nossas.

O que vislumbro para o futuro é a Prisão voluntária! O povo de nada sabe, mas dentro em breve seremos consagrados por promover o primeiro sistema de benefícios que protege os súditos comuns em detrimento dos instáveis e aventureiros: de início, estabeleceremos um esquema indenizatório que contemple os aristocratas de carreira em sua velhice, similar ao soldo que os militares veteranos recebem quando são dispensados; em seguida, estenderemos este benefício aos pintores, artesãos, escribas, carpinteiros, ferreiros, professores, advogados, burocratas e todos os demais servidores que compõem os alicerces do Estado. Depois virão os direitos trabalhistas. Haverá estabilidade e garantia de emprego aos gentios, mas somente aos servidores de carreira. Em suma, será muito vantajoso para eles abdicar de suas liberdades individuais e dedicar sua vida inteira à servidão pública assente e ordeira, uma vez que aqueles que optarem por isso serão recompensados com garantias que assegurarão a confortável imutabilidade de seus padrões de existência. E, encarcerados voluntariamente nesse sistema, sua completa falta de responsabilidade e senso de dever conduzirá na população uma apatia controlada, que permitirá que os Poderes constituídos governem com muito mais amplitude.

- E o livre-arbítrio? – perguntei.

- Você não entendeu, senhor Lock?! Realmente, é freqüente que homens de gênio tenham dificuldade de assimilar o óbvio ululante! Essa é justamente a parte mais bela da Prisão! Concederemos tantos benefícios, tantas vantagens, que os governados se submeterão ao Protocolo de forma voluntária, com indução apenas subliminar.

E, assim, preservaremos o livre-arbítrio dos seres sencientes, evitando uma série de problemas sombrios e profundos que advêm da manipulação forçosa (psíquica ou mágica) das Vontades, como podemos presenciar nas obscuridades que andam em curso em Sarlona.

- De fato, é uma imensa bolha que infla desde tempos imemoriais, e estourará em um cataclismo certamente desastroso. Acredita que, eventualmente, este acontecimento possa trazer conseqüências que ameacem o Reinado?

Jarot Galifar calou-se por um momento e olhou de relance um dos diagramas que tinha diante de si (notei que ele não queria que eu percebesse o rápido movimento dos seus olhos). Representava, segundo me pareceu, o pedaço de um mapa-múndi da Casa Orien, rasgado quadrangularmente nas zonas limítrofes de Khorvaire, mostrando timidamente Aerenal e uma porção de Xen’drik. Na figura, diversas setas desenhadas em tons sépia indicavam possíveis rotas de invasão. Atrevi-me a formular a última das minhas perguntas:

- Acredita que estamos em perigo, meu Rei?

Por um momento, tive a impressão de que sombras condensavam-se em sua fronte, mas era somente um efeito psicológico causado pelo aspecto grave que sua aparência e espírito assumiram naquele instante.

- Senhor Lock, esteja certo de que, no momento propício, o País demandará seu tirocínio em prol da luta pela liberdade e da utilidade pública. Por hora, no entanto, peço que se retire.

A rainha surgiu de repente, e me conduziu até a saída.

Gastei quase cinco mil peças de ouro para ver este homem, mas, na verdade, não tenho a impressão de havê-los desbaratado. Suas investigações acerca dos continentes circunvizinhos são assombrosamente plausíveis. Ele não chegou a desenvolver este tópico, mas chegou a pensar; o que, para mim, foi suficiente. Quanto ao seu projeto do cárcere voluntário, embora não lhe falte certo verniz de lógica, me pareceu demasiado simplista. Por que razões iriam as pessoas, espontaneamente, abandonar seus impulsos em troca de garantias insípidas?